Quando começou o Mais Médicos, tentativa do governo petista da Dilma de fazer com que a atenção básica atingisse o maior número de pessoas, houve forte reação de certos segmentos da classe médica. Muitos se sentiram humilhados. Naqueles idos de 2013, a classe médica ainda era capaz de articular alguma militância a favor de seus interesse genuínos e se reivindicava uma carreira de estado para médicos da atenção básica, de forma a garantir, igualmente, reforço consistente e estruturante da atenção básica à saúde dos brasileiros, “dever do Estado”. Naqueles idos havia a bandeira de uma legislação a favor do ato médico e a petição de um novo mínimo profissional, o piso salarial dos médicos (também bandeira de outras categorias). No caso dos médicos foi entendido que era necessário rever a lei 3.999 de 1961, tida como desatualizada e incapaz de garantir uma remuneração digna para os profissionais da Medicina.
Naqueles dias (segundo semestre de 2013), o governo da Dilma, aconselhado pelo Ministro da Saúde, Alexandre Padilha, pareceu tomar todas as decisões para afrontar a classe médica. Primeiro, a lei do Ato Médico saiu reduzida ao mínimo, amputada. A carreira de estado nem foi cogitada pelo governo e o novo piso salarial nacional para os médicos não entrou nas preocupações do governo. Nesse cenário, o Mais Médicos foi visto como uma humilhação de um governo inflexível, incapaz de negociações e de concessões. Isso ajudou a alavancar as vozes de segmentos da classe médica que queriam usar toda a categoria contra o governo, passando a defender os movimentos de rua que já começam a cogitar em pedir o impeachment da presidente. Mesmo quem foi contra o impeachment e quem não tinha restrições ao Mais Mèdicos, não viu como argumentar com aquele grupo que ganhava corpo e forma, que se fortalecia nas redes sociais, desejando o impeachment e alinhando argumentos e argumentos contra o governo petista.
Muitos desses, que, naquele momento defendiam o impeachment, acabaram, como que levados por uma correnteza, ao apoio à candidatura de Bolsonaro. Surgiu a figura do médico bolsonarista, o sujeito que acabou assumindo que havia um remedinho mágico contra a COVID, indiferente ao SUS, aos direitos trabalhistas e sociais dos médicos brasileiros. Esse médico bolsonarista está com seu candidato no poder.
E o que fez Bolsonaro a favor dos médicos que o apoiaram? Qual o valor da gratidão do presidente? O ato médico nunca foi revisto, depois de três anos de governo. O piso salarial nacional dos médicos não é sequer lembrado. Da carreira de estado, ninguém fala. O analfabetismo político de alguns, que se meteram a guiar outros, esquecendo que um cego não pode guiar outro cego, levou a classe médica a um beco sem saída, dividida, enfraquecida, incapaz de discutir a condição social do médico, a dignidade do profissional da Medicina no trabalho, a remuneração, o reconhecimento. A discussão virou cloroquina, ivermectina e outros que tais inúteis para os principais problemas da Medicina, mas adequados a uma claque de oportunistas baratos.
Enfim, ganhou Bolsonaro, perdeu a Medicina.
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