Ameaça ao sigilo profissional. Pode ser emitido um mandado de busca para documentos para os quais o sigilo profissional assegura a proteção da Lei. O caso abaixo leva à discussão sobre as relações entre as necessidades alegadas pela ação do aparato policial e as salvaguardas que a Lei dá sobre o sigilo profissional. Leia no link ou na transcrição abaixo.
Mandado de busca de prontuário acende discussões sobre o sigilo
Mandado de busca de prontuário acende discussões sobre o sigilo
Um episódio ocorrido em janeiro deste ano em Cuiabá, Mato Grosso, fez emergir discussões em torno do sigilo médico. Na ocasião, a delegada Ana Cristina Feldner ameaçou solicitar, em juízo, mandado de busca e apreensão do prontuário de paciente que morreu em decorrência de complicações de cirurgia de lipoaspiração. O caso é representativo da freqüente ocorrência de requisições de acesso a prontuários e fichas médicas feitas por autoridades judiciais, policiais e do Ministério Público. O conflito ocorre porque o prontuário é um documento cujo conteúdo pertence ao paciente, além de ser protegido por regras éticas e legais que impedem sua divulgação por qualquer outra pessoa, incluindo o médico.
Neste caso, a intenção era a de que servisse como subsídio para a investigação criminal da morte da paciente – uma mulher de 30 anos. A delegada não chegou a fazer a solicitação expressa porque a mãe da paciente, representandoa legalmente, teve acesso ao documento e o disponibilizou para o inquérito.
O caso está sendo investigado no âmbito da Polícia Civil pelo Centro Integrado de Segurança e Cidadania e no âmbito ético-profissional pelo CRM-MT – onde uma sindicância foi aberta para apurar a responsabilidade do médico e pode resultar em instauração de processo ético-profissional, que prevê penas de advertência, censura, suspensão e até mesmo a cassação do exercício profissional. Caso ocorra essa hipótese, o médico responsável será julgado por um conjunto de onze a 21 conselheiros, em Mato Grosso.
Segredo médico
Roberto d’Avila, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), explica que o sigilo médico é instituído em favor do paciente e encontra suporte na garantia dada pela própria Constituição Federal, conjunto de leis fundamentais que protege a intimidade em seu art. 5º, inciso X: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (...)”. Por sua vez, o Código Penal estabelece penalidades para a violação do segredo profissional. De acordo com o seu art. 154, qualquer segredo obtido através de função, ofício ou profissão deve ser resguardado.
No que diz respeito à medicina, o segredo médico é abordado pelo Código de Ética Médica e se baseia na relação de confiança entre o médico e o paciente. “O médico é o guardador, o depositário das informações relacionadas à saúde e à doença. E essas informações têm caráter íntimo e privado”, explica d’Avila.
Esse sigilo, no entanto, não é absoluto, podendo o médico revelá-lo se houver autorização expressa do paciente. Outra circunstância que permite tal revelação é o dever legal, como, por exemplo, os casos de doenças infectocontagiosas de notificação compulsória. A revelação também está prevista se houver justa causa – a qual se configura quando o segredo põe em risco outras pessoas com as quais o paciente conviva. Por exemplo, um portador de moléstia grave e transmissível por contágio que se recuse a contar tal fato ao cônjuge.
CFM desaprova acesso
O CFM é contrário a ceder integralmente o prontuário de um paciente a delegado que faça essa solicitação. A Resolução CFM nº 1.605/00 recomenda, em seu art. 4º, que se na instrução de processo criminal for requisitada, por autoridade judiciária competente, a apresentação do conteúdo do prontuário ou da ficha médica, o médico disponibilizará os documentos ao perito nomeado pelo juiz, para que neles seja realizada perícia restrita aos fatos em questionamento. “Constantemente temos esse tipo de conflito, mas defendemos que não se entregue prontuários a delegados, juízes ou promotores. Queremos, através do diálogo, fazê-los entender e respeitar a necessidade do sigilo e proteção ao paciente”, enfatiza d’Avila.
Clóvis Constantino, diretor do CFM e coordenador da mesa-redonda de confidencialidade do I Fórum sobre Privacidade e Confidencialidade, lembra que o Código de Ética Médica deixa claro em seu art. 102 que o sigilo deve ser preservado mesmo que o paciente tenha falecido: “Respeitando-se aí o valor da confidencialidade, essencial para o exercício da medicina com a finalidade da proteção da privacidade dos pacientes, evitando conseqüências nefastas à credibilidade da profissão”.
Delegada quer soluções práticas
A delegada responsável pelo caso ocorrido em Cuiabá, Ana Cristina Feldner, confirma
que pretendia solicitar mandado de busca e apreensão do prontuário e justifica que quis ter acesso ao documento para solucionar divergências de informações e fazer uma apuração mais precisa.
Concorda que o interesse maior deve ser o da vítima – no caso, a paciente –, mas ressalta que a indisponibilidade e insuficiência de médicos peritos obstrui e dificulta o andamento do inquérito. E acredita que a autorização do representante legal deveria ser levada em conta para acesso ao prontuário. “Essa solução resguardaria o médico e agilizaria a obtenção de informações”, opina.
Outro problema, segundo ela, é a elaboração da relação de informações que devem ser colhidas pelo médico perito, haja vista que novos questionamentos podem aparecer constantemente, de acordo com o andamento do inquérito, e ter de recorrer seguidamente ao médico perito seria um entrave.
O presidente do CRM-MT, Aguiar Farina, diz ter conversado com a delegada para tratar sobre o assunto. Na ocasião, explicou, detalhadamente, que o prontuário médico contém informações sobre a vida do paciente e que os médicos não poderiam fornecer cópia porque podem ser acionados por quebra de sigilo. E ressaltou que mesmo que o paciente tenha falecido tal responsabilidade persiste. “Os médicos não fornecem as informações por não quererem informar, mas porque temem ação judicial por danos morais devidos à quebra de sigilo. Ela acabou concordando e ainda combinamos de nos reunir para debater o tema com os demais delegados de Polícia. Ficamos de agendar uma data para tal”, relata Farina.
Parentesco não legitima acesso
A Nota Técnica nº 57/07 do setor jurídico do CFM, que trata da liberação de prontuário a representante legal de paciente falecido, esclarece que, no sentido técnico da expressão, o falecido já não mais pode ser representado. Contudo, existem pessoas que, presumivelmente, gostariam de ver respeitados os direitos do morto e às quais, por isso, a lei atribui legitimidade para agir. Ainda assim, o parentesco, por si só, não configura a justa causa a que se refere o Código de Ética Médica. No caso de interesse dos familiares na apuração de eventual erro médico, a nota considera que a desconfiança de erro médico como justificativa para a liberação do prontuário ao parente reduz muito pouco o alcance do sigilo profissional. A revelação do prontuário em sua totalidade poderia desvelar informações íntimas do falecido que em nada viriam a colaborar para a apuração de possível responsabilidade médica. Além disso, mesmo que a revelação de tais informações seja imprescindível para a investigação, é um perito (e não um familiar) quem terá condições de avaliá-las.
Para estabelecer o entendimento, o conselheiro representante do Mato Grosso, José Fernando Maia Vinagre, defende o diálogo entre as instituições em torno do sigilo médico e da representatividade legal. “Acho que deve envolver isso, uma discussão. Que os conselhos possam trazer o Ministério Público, o Judiciário, para discutir e dialogar a questão da representatividade legal”, diz.
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